O ARISTOCRATA POPULAR

 O ARISTOCRATA POPULAR

Criado na cozinha de um palácio barroco de São Petersburgo, na Rússia, o ESTROGONOFE tornou-se um prato de domínio internacional
Preparado no mundo inteiro, inclusive no Brasil, onde já teve fama de chique, o stroganov, stroganoff, strogonoff ou estrogonofe (em português) foi inventado em São Petersburgo, na Rússia, no palácio barroco de uma família aristocrática. Os Stroganov formaram durante séculos um influente clã brasonado: fundaram sua linhagem em Novgorod, a 155 km de São Petersburgo; enriqueceram como mecenas, negociantes, fabricantes de armas e militares de feitos históricos, entre os quais a conquista da Sibéria para a Rússia, no final do século XVI.
O prato com o nome da família levava inicialmente cubos graúdos de carne temperada com sal e pimenta-do-reino, macerada nesses temperos; em panela à parte, refogava-se cebola na manteiga, deixando-a murchar; depois, acrescentava-se a carne para fritar; a seguir, polvilhava-se um pouco de farinha de trigo, mexendo por alguns instantes; finalizava-se adicionando smétane (creme de leite azedo) e yuzhny (molho russo à base de especiarias). Os russos ainda o fazem assim. Estava pronto o estrogonofe.
No final do século XIX, o cozinheiro francês Thierry Costet, que trabalhava para o clã, deu-lhe retoques enriquecedores: incorporou cebolas e champignons, pepino em conserva e páprica. Foi desse modo que a enciclopédia francesa “Larousse Gastronomique” registrou-o em um dos verbetes da edição de 1938. Mas recomendou usar tiras finas de filet mignon, contrafilé ou alcatra. Denominou-o boeuf stroganov (e não stroganoff ou strogonoff). O livro “Cocina Rusa” de A. Krasheninnikova, na tradução espanhola (Paraninfo, Madri, 1982), trata-o por stroganoff de carne de vaca.
Fora da Rússia, porém, o estrogonofe foi interpretado diversamente. Os norte-americanos, por exemplo, acrescentaram-lhe ketchup e às vezes bacon frito. No Brasil, compõe-se de tiras ou cubinhos de carne bovina, servidas em molho de creme de leite, champignon de Paris, molho inglês, além do ketchup. Leva ocasionalmente bacon frito. Sem contar as variações do seu ingrediente básico. Em vez da carne bovina, pode-se usar frango, peru, camarão. Existem até receitas vegetarianas e veganas, à base de cogumelo, palmito, grão-de-bico, berinjela, batata, inhame, soja etc.
Impossível saber quando surgiu o estrogonofe. As informações são contraditórias. Entretanto, a versão mais aceita é que o prato teve como berço a cozinha do esplendoroso Palácio Stroganov, hoje museu, erguido na segunda metade do século XVIII em São Petersburgo. Cidade às margens do Mar Báltico, foi capital imperial da Rússia por dois séculos. Segundo alguns, o estrogonofe surgiu no início do século XVIII por influência de um Stroganov que frequentava a Corte de Pedro, o Grande, primeiro soberano do Império Russo. Outros atribuem sua invenção ao cozinheiro do conde, general e diplomata Pavel Alexandrovich Stroganov (1774-1817) que no século XIX participou do governo de Alexandre I, o czar vencedor de Napoleão Bonaparte. Também se credita a receita à mulher portuguesa do conde e diplomata Grigory Alexandrovich Stroganov (1769-1857). Aliás, receitas que harmonizam carne e smétane existem no Leste Europeu desde a Idade Média.
A portuguesa era uma mulher bonita, sensual e namoradeira. Chamava-se condessa de Ega e costuma ser lembrada por ter sido amante de um inimigo da sua pátria: o general francês Jean-Andoche Junot, quando ele invadiu Lisboa a serviço de Napoleão Bonaparte e obrigou D. João VI com sua corte a mudar para o Brasil. Estava casada com o primeiro marido. Nascida Juliana Maria Luísa Cardoso Sofia de Oyenhausen e Almeida (1782-1864), a condessa de Ega casou duas vezes, ambas com homens mais velhos e ricos, generosos com as mulheres. Na primeira vez, uniu-se oficialmente a Aires José Maria de Saldanha Albuquerque Coutinho Matos e Noronha (1755-1827), o segundo conde de Ega. O casal residiu em Madri, na época em que o marido era embaixador de Portugal na Espanha.
O segundo casamento da condessa de Ega foi justamente com o conde e diplomata Grigory Alexandrovich Stroganov. Treze anos mais velho do que a mulher, já estava com os dentes arruinados quando a conheceu. Para facilitar a mastigação do marido, a condessa de Ega teria adaptado a receita do fricassé de carne moída, adicionando-lhe smétane. Uma versão divergente atribui o feito ao cozinheiro do Palácio Stroganov.
Enviuvando, a condessa de Ega permaneceu em São Petersburgo, pois recebeu herança portentosa. Ganhou em usufruto vitalício o Palácio Stroganov e a guarda da maior coleção de obras de arte da Rússia na época. Tinha quadros dos melhores pintores de todos os tempos: Van Dyck, Rembrandt, Michelangelo, Luca Giordano, Goya e Velázquez. Com a revolução de 1917, que derrubou a monarquia e levou ao poder os comunistas, o novo regime desapropriou o Palácio Stroganov e o fechou em 1920. A seguir, espalhou seu acervo por vários museus, entre os quais o Hermitage, de São Petersburgo. Na década de 1930, o ditador russo Josef Stalin, precisando de dinheiro, vendeu em leilão na Alemanha do seu então “amigo” Adolfo Hitler uma parte da coleção.
A receita original do estrogonofe apareceu publicada na Rússia, pela primeira vez, em 1861. Saiu no livro “Um Presente Para Jovens Donas de Casa”, de Elena Malokhovets, de São Petersburgo. A autora deu-lhe um nome diferente. Batizou o prato de carne stroganov com mostarda. Incorporando outros ingredientes, começou a fazer sucesso internacional ao ser introduzido na França pelos nobres que escaparam da revolução de 1917. Estreou comercialmente Maxim’s, de Paris, o requintado restaurante fundado no esplendor da Belle Époque. Antes da tomada do poder pelos comunistas na China, liderados por Mao Tsé-Tung, o estrogonofe era atração gastronômica nos restaurantes dos hotéis que hospedavam russos e ocidentais. Teria sido naquele país – e não em Paris – que os norte-americanos se apaixonaram pelo prato e o assimilaram, introduzindo-lhe ketchup.
O estrogonofe desembarcou no Brasil entre as décadas de 1940-50, difundido no Rio de Janeiro pelo barão austríaco Max von Stuckart, dono da boate Vogue, em Copacabana, o mais importante e refinado nigth club da cidade. Empresário de sucesso nos ramos da restauração, hotelaria e diversão, costumava oferecer um picadinho de graça aos jornalistas que cobriam a madrugada carioca. Mas os profissionais da imprensa cansaram-se da “boca livre” invariável e reclamaram através do seu porta-voz, o colunista social Ibrahim Sued, na época do jornal “Vanguarda” e da revista “Rio”.
Max von Stuckart entendeu a queixa e passou a servir um prato mais incrementado: o estrogonofe. Tratava-se de receita conhecida de Gregório Berezansky, seu cozinheiro russo, que ganhava do patrão 4 mil dólares por mês, mais a hospedagem. “Colunas e reportagens, a partir dali, cantaram as virtudes e a nobreza do prato, que invadiu a cozinha dos emergentes cariocas”, recordou uma testemunha histórica. Referimo-nos ao jornalista Henrique Veltman, que foi chefe de redação dos jornais “Última Hora” e “O Globo”, do Rio de Janeiro. “A novidade nada mais era do que um picadinho com uma dose de smétane e alguns cogumelos”, lembrou ele.
Turistas que iam ao Rio de Janeiro se deslumbravam com seu sabor e textura – e carregavam a receita para suas cidades. Assim ela espalhou-se pelo Brasil. Hoje, milhares de residências do país a preparam de maneira variada. Foi também o prato oficial da Bossa Nova, o gênero musical inovador surgido no final da década de 1950 no Rio de Janeiro. O jornalista e escritor Ruy Castro, no livro “Chega de Saudade – a História e as Histórias da Bossa Nova” (Companhia das Letras, São Paulo, SP, 1999), fala de determinada reunião do grupo para uma reportagem da revista “O Cruzeiro”, em 1959, na casa do pianista Bené Nunes, na Rua Osório Duque Estrada, da Gávea. O encontro durou horas e só foi interrompido por volta de meia-noite, para que Dulce Nunes, mulher do anfitrião, servisse estrogonofe.
Quem publicou um depoimento bem-humorado sobre o prato foi o cantor e compositor Erasmo Carlos, na biografia “Minha Fama de Mau” (Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2009). Corriam os tempos da Jovem Guarda, o movimento lançado por ele, Roberto Carlos e Wanderléa em meados da década de 60. Erasmo já ouvira falar do prato. “Ibrahim Sued, Jacinto de Thormes e o grande amigo e benfeitor dos Snakes, Carlos Renato (colunista social da Zona Norte do Rio, que escrevia no jornal ‘Última Hora’) não se cansavam de citá-lo em suas colunas como must dos eventos”, assinala. O cantor e compositor provou estrogonofe pela primeira vez em uma boate e gostou tanto que passou a solicitá-lo sempre.
“Os garçons até já sabiam”, lembrou Erasmo Carlos. “O nome da delícia me remetia ao high society”. Um dia foi jantar no restaurante Gigetto, de São Paulo e, para impressionar a namorada, pediu o prato ao garçom carregando nos efes: “Por favor, amigo, estrogonofffffe para dois”. Quando a comida chegou à mesa, estranhou a cor, achou-a clara demais. Então, questionou o garçom, depois o maître e finalmente o cozinheiro. Todos insistiam na autenticidade da receita. Ele discordava firme. Não era o mesmo prato que costumava comer. Entretanto, decidiu saboreá-lo – e sentiu enorme prazer, dando-se conta do engano. “Pouco acostumado às mesas de restaurantes, onde a luz é mais intensa, demorei a perceber que o molho do estrogonofe só era mais escuro na penumbra das boates”, acrescentou.
Outra história que inscreve o Brasil na rota do estrogonofe aconteceu entre as décadas de 1960-90. Morou na cidade de São Paulo, na ocasião, uma aristocrata russa. Chamava-se Sophie Stroganov (ela preferia assinar Stroganoff). Sim, era da família de São Petersburgo. Mudara criança com a mãe para Paris, cidade na qual se refugiaram muitos dos seus parentes depois de 1917. Transferiu-se adulta para o Brasil, onde conheceu o marido, um russo de origem plebeia. Entretanto, precisou reforçar o orçamento doméstico. Ensinou línguas e abriu um salão de beleza.
Em 1996, Sophie Stroganov morreu em São Paulo, já viúva e residindo no bairro dos Jardins. Deixou receitas divinas, transmitidas à baiana Lúcia Costa Passos, a cozinheira que trabalhou para ela por trinta anos e a acompanhou até os últimos dias de vida. O elenco obviamente incluía estrogonofe, prato que a aristocrata preservou, sem conseguir o mesmo para sua família, arruinada com a derrubada do Império Russo e a vitória da revolução comunista.
ESTROGONOFE CONTEMPORÂNEO
Rende 4 a 6 porções
INGREDIENTES
.1 kg de filé mignon
.200g de champignons de Paris frescos
.2 colheres de sopa de óleo
.2 colheres de sopa de manteiga
.1 cebola picada
.50ml de vodka
.120 ml de caldo de carne
.1 colher de sopa de mostarda Dijon
.150 g de creme de leite fresco batido rapidamente (até engrossar um pouco) com 1/2 colher de chá de limão
.1/2 colher de chá de páprica doce (ou picante)
.Farinha de trigo para polvilhar
.Suco de limão o quanto baste
.Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto
ACOMPANHAMENTO
.Arroz branco e batata palha (ou sauté)
PREPARO
1.Corte o filet mignon em tirinhas ou pequenos cubos, tempere com sal, pimenta e polvilhe-os com um pouco de farinha de trigo. Reserve.
2.Limpe os champignons e fatie-os. Pingue algumas gotas de limão para que não fiquem escuros e reserve-os.
3.Numa panela grande, coloque o óleo, incorpore a carne e frite-a rapidamente, mexendo sempre. Retire da panela e reserve.
4.Na mesma panela, acrescente a manteiga, a cebola, refogue e volte com a carne à panela. Em seguida, flambe com a vodka.
5.Adicione os champignons, o caldo de carne e cozinhe um pouco mais. Quando a carne já estiver macia, junte a mostarda, o creme de leite e a páprica. Misture bem e finalize ajustando o sal, se necessário.
6.Sirva o estrogonofe acompanhado de arroz branco e batata palha (ou sauté).
.Receita de Ligia Marcondes, publicada no site https://www.entrepratosecopos.com.br/
FOTOS
1)O stroganov, stroganoff, strogonoff ou estrogonofe: receitas diversificadas (Foto: Gladstone Campos).
2)Palácio Stroganov, em São Petersburgo, na Rússia: local de nascimento do prato (Foto: Wikipédia).
Eiji Tomimatsu, Paulo Miani e outras 244 pessoas
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