A CANJA DA CASA DE BRAGANÇA

 A CANJA DA CASA DE BRAGANÇA

O prato favorito de Dom Pedro II, ideal para ser preparado e saboreado nestes dias de frio enregelante
Admirado pela serenidade, senso de justiça e de dever, pela dedicação ao país e ao seu povo, o Imperador Dom Pedro II (1825-1891) será lembrado no dia 5 de dezembro, nos 130 anos da sua morte. Ele governou o Brasil durante mais de meio século, em período incomum de progresso e estabilidade econômica e social. Foi deposto em 1889, por um golpe militar liderado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, que derrubou a Monarquia e proclamou a República.
Sua figura passa hoje por um revival. A Rede Globo estreou na segunda-feira passada uma novela em torno de Dom Pedro II, no horário das 18 horas. Intitula-se “Nos Tempos do Imperador”, começando a trama em 1856 e indo até 1870. A imprensa refere-se muitas vezes a Dom Pedro II e as redes sociais o mencionam seguidamente. Circula inclusive uma live do ator Miguel Falabella louvando seu desempenho como governante.
Publiquei em 2004 o livro de crônicas “A Canja do Imperador” (Companhia Editora Nacional, São Paulo, SP). Um dos textos trata precisamente de Dom Pedro II. Comento assim seu treinamento para o exercício do poder: “Órfão de mãe com 1 ano e tendo 6 anos quando o pai, Dom Pedro I, abdicou do trono do Brasil em seu favor, Dom Pedro II foi criado por aias, preceptores e tutores. Teve educação particular severa e esmerada. Aprendeu ciências naturais, filosofia, geografia, história, desenho, direito, medicina, matemática, astronomia, equitação, escrita, esgrima, literatura, música, piano, dança, pintura, alemão, inglês, francês, hebraico, grego e português. Homem de cultura, afeiçoado às letras e às artes, vivia entre livros”.
“Financiou escritores e artistas, correspondeu-se com personalidades internacionais, como o zoólogo e geógrafo suíço Louis Agassiz, o diplomata e homem de letras e filósofo francês Arthur de Gobineau, o cientista francês Louis Pasteur, pai da microbiologia, e o maestro e compositor alemão Richard Wagner. Fez duas longas viagens ao exterior, a primeira de maio de 1871 a março de 1872; a outra, de março de 1876 a setembro de 1877 (ambas pagas por ele, não pelo dinheiro público). Em caricatura da época, aparece gritando ao desembarcar em porto estrangeiro. ‘Onde estão os sábios? Neste país não há sábios? Quero ver os sábios’. Entretanto, não lhe ensinaram a exercitar o paladar com receitas da cozinha requintada – ou ele não se interessou por essa disciplina. Além disso, era abstêmio”.
Dom Pedro II foi na verdade um desastre à mesa – e não só por ligar pouco para a comida. Alimentava-se rapidamente, quase sempre sozinho ou acompanhado pelos dois cadetes da Escola Militar que o escoltavam nas saídas do Palácio São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Caso os militares em formação não acompanhassem o ritmo de Dom Pedro II, saíam da mesa com fome. O único prato que saboreava com tranquilidade e ostensivo prazer era canja de galinha ou de macuco – ave brasileira grande como o peru, atualmente ameaçada de extinção e com a caça interditada por lei.
Reforçava seu momento prazeroso com goles de água com açúcar armazenada em um grande jarro. Conta-se que o Barão de Paranapiacaba surpreendeu-se com a composição do “refresco” do qual Dom Pedro II se servia para enfrentar o verão carioca, enquanto ambos traduziam “Prometeu Acorrentado”, do dramaturgo grego Ésquilo. Não por acaso, o Imperador gostava de doces, sobretudo de sorvetes, preferindo o de pitanga. Alguns biógrafos acreditam que o consumo exagerado de açúcar contribuiu para que Dom Pedro II se tornasse diabético. Entretanto, não foi o elevado nível de glicose no sangue que o matou. Ele morreu no exílio, em um modesto hotel de Paris, solitário e saudoso do Brasil, vítima de pneumonia contraída no inverno, a caminho da biblioteca que frequentava diariamente.
Na biografia “Artur Azevedo e Sua Época” (Coleção Saraiva, São Paulo, SP, 1953), o escritor R. Magalhães Júnior relata que o Imperador gostava de ir ao teatro, sobretudo quando se apresentavam companhias europeias. Acompanhava o espetáculo sem bocejar ou dormir, como seu avô Dom João VI, mas tomava “uma canja quente entre o segundo e o terceiro ato, que só começava, por isso mesmo, ao ser dado o aviso de que Sua Majestade terminara a ceiazinha”.
Era um prato que estava no DNA da Casa de Bragança, a que pertencia Dom Pedro II, família real que governou Portugal e o Brasil por muitos anos. Todos os seus membros suspiravam por uma canja. Aquele que a recusasse não teria o sangue da família. O povo se divertia com uma lenda. Cochichava que um tio de Dom Pedro II talvez não fosse filho do Rei Dom João VI (o avô do Imperador). E sim, apenas de sua mulher, a espanhola Dona Carlota Joaquina, com o Marquês de Marialva, estribeiro-mor e mestre de equitação. Qual a razão da maldade? Porque, segundo circulava, seria o único que não gostava de canja de galinha.
“Na cozinha do Palácio da Ajuda (Paço Real a partir do terremoto de 1755, que destruiu Lisboa), havia sempre canja fresca confeccionada para a Rainha Dona Maria I (mãe de D. João VI), pois acreditava ser fundamental para a manutenção da saúde e, portanto, consumia-a diariamente”, assinala o cronista e escritor gastronômico Virgílio Nogueiro Gomes, de Lisboa. Tanto que virou comida de hospital, em Portugal e no Brasil. Tratava-se de uma intuição científica. Hoje, sabe-se que os aminoácidos e nutrientes presentes no seu caldo ajudam a prevenir inflamações; e que os ossos da galinha transferem colágeno à preparação, proteína fundamental na constituição da matriz extracelular do tecido conjuntivo.
A canja é prato nascido na Índia, na Costa de Malabar, onde se encontra Goa, colônia lusitana entre 1510 e 1961. Mas não levava todos os ingredientes atuais, nem apresentava os múltiplos sabores de hoje. Chamava-se “kengi” (grafada com “e” e “g”, e não “kanji”, como registra o “Novo Dicionário Aurélio”), palavra da língua malaiala, falada na Costa do Malabar. Indicava um “caldo quente e salgado”, ao qual se podia acrescentar arroz.
Foram os portugueses que provavelmente incorporaram a galinha. Até hoje eles a preparam assim e também com bacalhau (na região da Estremadura), pescada (Alentejo), moluscos (Algarve) e carnes variadas (em todo o país). No Brasil, não abrimos mão da galinha. A canja nacional, até por ser muitas vezes prato único na refeição, é mais substanciosa do que a portuguesa – e nesse ponto temos o aval de Virgílio Gomes. No Brasil, além do arroz e da galinha, da asa, coxa, miúdos e pescoço de ave, cheiro-verde, louro, alho, cebola, pimenta-do-reino, tomate, cenoura, batata etc.
O estadista e naturalista norte-americano Theodore Roosevelt, que veio ao nosso país em 1913, depois ser eleito duas vezes presidente dos Estados Unidos, apaixonou-se pelo prato. Solicitou-o inúmeras vezes, quando viajou em expedição científica, na companhia do ilustre sertanista mato-grossense Cândido Rondon, para determinar o trajeto do Rio da Dúvida, que nasce em Rondônia; e a fim de descobrir se aquele curso de água natural era ou não afluente do Amazonas.
“Enquanto houve galinha, canja de galinha no almoço e no jantar”, escreveram Odylo Costa, filho, Carlos Chagas Filho, Pedro Costa e Pedro Nava, no livro “Cozinha do Arco-da-Velha” (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997). “Mas, no antigo Rio da Dúvida (atual Roosevelt), o então Coronel Rondon teve de dar outro jeito. Caçava jacu e jacutinga para a canja do visitante que estava, sem saber, comendo o prato predileto de D. Pedro II”.
No apreço pela receita, nosso Imperador só teria uma concorrente na família de então: a Princesa Francisca de Bragança (1824-1898), sua irmã, que casou no Rio de Janeiro com Francisco Fernando Filipe de Orléans, Príncipe de Joinville, filho de Luís Filipe I, último rei da França, e foi viver com ele em Paris. Quando desembarcou com o marido no Porto de Brest, da Bretanha, em 1843, a princesa causou risadas ao pedir, porque tinha frio, “um remédio para aquecer o corpo”. A seguir, indicou o que desejava: canja de papagaio. Isso mesmo, canja de papagaio!
Anos mais tarde, o Príncipe de Joinville contou divertido que os bretões, educadamente, ofereceram à sua mulher soupe au poulet et riz. Tratava-se de um caldo quente à base de frango, arroz e servido com um molho de manteiga, farinha de trigo, gema de ovo e creme de leite. Enfim, uma preparação que, se apresentava algum parentesco com a canja de papagaio, era longínquo. O prato original só iria saborear depois de instalada em casa. A Princesa Francisca deleitou-se com a autêntica canja de galinha desde infância, até o final da vida. Papagaio ou sucedâneos como arara, periquito, maracanã e jandaia, seria muito difícil de encontrar na França... Exatamente como Dom Pedro II.
CANJA À BRASILEIRA
Rende 6 porções
INGREDIENTES
CALDO
.Carcaça, pés e asas de galinha
.3 talos de salsão em pedaços, com as folhas
.2 dentes de alho inteiros
.1 cebola cortada ao meio
.1 alho-poró em pedaços
.1 amarrado de salsinha
.1 folha de louro
.Cerca de 3 a 4 litros de água
.Sal a gosto
CANJA
.1 peito de galinha
.2 coxas com as sobrecoxas
.1 cebola picada
.50ml de óleo
.3 talos de cebolinha verde cortados em rodelas
.1 xícara (chá) de arroz
.2 cenouras cortadas em finas tiras
.2 batatas cortadas em cubos
.1 1/2 xícara (chá) de vagens cortadas em pequenos pedaços
.1/2 xícara (chá) de ervilhas
.4 talos de salsão raspados e fatiados
.2 galhinhos de manjerona
.2 tomates sem casca cortados ao meio
.O caldo quente passado pelo coador
.Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto
PREPARO
CALDO
1.Em uma panela grande, de fundo grosso, coloque a carcaça, os pés e as asas de galinha, com os demais ingredientes. Leve as fogo e deixe ferver por cerca de 30 a 45 minutos, em fogo lento.
2.Retire do fogo, passe o caldo por um coador e reserve para misturar na canja.
CANJA
3.Na mesma panela que cozinhou o caldo, doure a cebola no óleo quente, junte o peito, as coxas com as sobrecoxas, a cebolinha verde e refogue bem.
4.Adicione o arroz e os demais ingredientes.
5.Deixe no fogo até a galinha ficar bem cozida. No final, retire a galinha e desfie-a, eliminando a pele e os ossos.
6.Retorne com a galinha desfiada à panela e ajuste o sal e a pimenta.
7.Sirva bem quente.
IMAGENS
1)Dom Pedro II: uma canja quente no teatro, entre o segundo e o terceiro ato, que só começava quando ele terminava de comer (Retrato tirado em Nova York, EUA, no ano de 1876, Acervo da Fundação Biblioteca Nacional)
2)Francisca de Bragança: a princesa que desembarcou na França pedindo canja de papagaio (Retrato pintado em 1846 pelo artista germânico Franz Xaver Winterhalter, Wikipédia)
Eiji Tomimatsu, Dácio Nitrini e outras 223 pessoas
78 comentários
73 compartilhamentos
Curtir
Comentar
Compartilhar

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O CISNE QUE DANÇAVA

O ARISTOCRATA POPULAR

A TORTA DO SANTO