COMILANÇA PATRIÓTICA

O farto banquete histórico oferecido ao então príncipe regente Dom Pedro, em São José do Barreiro, no interior de São Paulo, às vésperas da proclamação da Independência do Brasil
Na viagem memorável que fez do Rio de Janeiro a São Paulo, na segunda metade de 1822, durante a qual proclamou a Independência do Brasil, o então príncipe regente Dom Pedro foi homenageado com um opulento banquete típico. Realizou-se a 17 de agosto na Fazenda Pau d’Alho, em São José do Barreiro, no Vale do Paraíba. O futuro imperador deixou no dia 14 a Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, onde vivia, cumprindo um roteiro pré-determinado, com paradas ao longo do caminho. Partiu a galope, escoltado por uma pequena comitiva que foi engrossando ao longo do caminho. Depois de atravessar o Vale do Paraíba, ele desceu a Serra do Mar e alcançou Santos, percorrendo alguns trechos a cavalo, outros no lombo de mula. Voltou ao Rio de Janeiro a 14 de setembro.
A propriedade pertencia ao coronel João Ferreira de Souza, dono de terras a perder de vista. O casario numeroso era de taipa de pilão (cascalho e saibro socados) com base de pedra. Dispunha de uma varanda, que abrangia toda a fachada; e uma capela dedicada à Virgem Maria, com sua imagem vestindo manto drapeado, azul e ouro. Hoje, a Fazenda Pau d’Alho encontra-se tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Aliás, sua notoriedade não deriva apenas da visita de Dom Pedro. Deve-se também à prosperidade e pujança que alcançou.
Foi uma das primeiras propriedades nacionais voltadas totalmente ao cultivo e beneficiamento do café. Em 1858, dispunha de uma plantação de trezentos mil pés produtores dos grãos que o inspirado poeta Casimiro de Abreu, da segunda geração do romantismo, chamou de “preciosa rubiácea”: “O campo em vermelho trata/Da aventura do trabalho,/Uma marca deste povo./Derrubadas as florestas/Da região centro-oeste,/Nascem fazendas imensas/Da preciosa rubiácea”.
O botânico, naturalista e viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, integrante do grupo científico vindo da Europa, para realizar pesquisas e explorações no Brasil Colônia, entre os anos de 1816 e 1822, admirou-se com a propriedade, registrando sua surpresa no livro “Segunda Viagem a São Paulo” (Livraria Martins Fontes, São Paulo, SP, 1953): “No lugar denominado Pau d’Alho fica a maior plantação que vi nesta estrada e a única em que a casa do fazendeiro apresenta sobrado”.
Na peregrinação histórica a São Paulo, o príncipe regente estava com 24 anos de idade, era um jovem de porte atlético, caráter altivo e arrebatado. No livro “O Rei Cavaleiro” (Edição Saraiva, São Paulo, SP, 1941), o primoroso biógrafo e historiador baiano Pedro Calmon descreve Dom Pedro como um homem corado, com o sangue a rebentar nas faces, “os lábios grossos do pai (Dom João VI), os olhos vivos da mãe (Dona Carlota Joaquina) e um robusto braço plebeu (...) para derrubar touros no picadeiro”.
A viagem teve finalidade política. São Paulo vivia um período conturbado, com uma parte das suas elites ameaçando não cumprir as ordens emanadas do Rio de Janeiro, sede da regência. “Dom Pedro I veio firmar alianças com os fazendeiros, apaziguar o cenário e preparar terreno para a Independência", explicou em uma entrevista o historiador e biógrafo paulista Paulo Rezzutti, autor do ótimo livro “D. Pedro, a história não contada. O Homem Revelado por Cartas e Documentos Inéditos” (Casa da Palavra/LeYa, São Paulo, SP, 2015); e de outros títulos em torno de figuras da família do primeiro soberano brasileiro.
Informado de que Dom Pedro faria uma escala na sua propriedade, o coronel João Ferreira de Souza mandou preparar um banquete, cuja comida o hóspede ilustre não saboreou imediatamente ao chegar. A história é divertida. O dono da Fazenda Pau d’Alho acordou de madrugada e montou a cavalo, acompanhado do filho Francisco. Queria encontrar ainda no caminho o príncipe regente, recepcioná-lo com os salamaleques regulamentares, conduzi-lo gentilmente até sua propriedade. As mucamas (escravas negras que cozinhavam e se dedicavam aos serviços caseiros) ficaram dando os retoques finais no banquete.
Sobre uma enorme mesa de madeira, estenderam uma toalha de linho, com renda delicada balançando nas extremidades, dispuseram a louça certamente inglesa, os copos de cristal francês, os talheres de prata portuguesa. Em uma travessa azul, acomodaram o leitão assado lentamente, tendo o indispensável limão atravessado na boca. Na hora de servir o banquete, vieram arrozes e guisados de animais de criação ou de caça; e os apreciados virados, incluindo o de feijão, bruto e gostoso, prato puro-sangue da cozinha brasileira. Entre as outras maravilhas oferecidas a Dom Pedro, imagina-se a presença de bolinhos de lambari, caldo de palmito, inhame dourado na manteiga e a carne-seca ensopada; e, finalmente, pão de ló, doces de ovos, pudim de pão dormido, arroz doce e furrundum (cidra ralada ou mamão verde idem, gengibre, rapadura derretida ou açúcar mascavo).
A certa altura, apareceu de surpresa na porta da cozinha, batendo palmas, um moço simpático. Disse pertencer à comitiva do príncipe regente. Afirmou que deixara os companheiros para trás, porque sentia fome. Na verdade, apostara corrida com os membros da comitiva e, exímio cavaleiro, vencera a competição. Chegando sozinho à Fazenda Pau d’Alho, não se identificou. Pediu comida à Maria Rosa de Jesus, a dona da casa. Segundo a voz do povo, ela serviu-lhe arroz, feijão e carne. Entretanto, impôs uma condição. O jovem forasteiro deveria comer na cozinha, porque a sala de jantar estava reservada ao príncipe regente.
A cena divertida foi contada em detalhes pela professora e escritora paulista Maria de Lourdes Borges Ribeiro, uma das pesquisadoras de maior expressão nos estudos do folclore do Vale do Paraíba. Ela a relatou no livro “Na Trilha da Independência – História e Folclore” (Ministério da Educação e Cultura – Departamento de Assuntos Culturais, Rio de Janeiro, 1972). O jovem forasteiro começou a jantar em uma mesinha singela. “Pouco depois, entra o coronel João Ferreira de Souza”, escreveu Maria de Lourdes Borges Ribeiro. “Embaraçado, mas com fisionomia plena de orgulho, beija a mão de Dom Pedro”.
O moço simpático saboreava a comida dos criados e rolava de rir com a situação. Então, o coronel João Ferreira de Souza convidou-o a mudar para a sala de jantar, onde Dom Pedro finalmente foi servido dos pratos do farto banquete. Antes de prosseguir a viagem, o homenageado, sempre bem-humorado, plantou uma palmeira imperial na Fazenda Pau d’Alho. Teria voltado ali quatro vezes, repetindo o gesto. Plantou cinco palmeiras até hoje vivas e exuberantes.
O percurso da arrojada viagem a São Paulo – que um século depois seria acompanhado pelo traçado da antiga Estrada Rio-São Paulo, inaugurada em 1928 – incluía trechos desabitados da Serra do Mar, matas serradas, rios e riachos para transpor. Só no vale do Paraíba eram encontradas algumas povoações e fazendas com lavouras de café e cana-de-açúcar. O príncipe regente soube de antemão que, além das trilhas difíceis, descansaria ao relento e teria de alimentar-se com o que encontrasse. Isso não o intimidou; ao contrário, desafiou-o.
Os pratos servidos a Dom Pedro na Fazenda Pau d’Alho documentam o nascimento da cozinha brasileira de ascendência portuguesa e indígena, enriquecida pelas contribuições posteriores dos escravos africanos e imigrantes de países diversos. Foi no Vale do Paraíba, por exemplo, que se adaptou a receita lusitana do leitão pururuca, ou seja, de pele estaladiça e crocante, recheado generosamente. Até hoje é prato típico da região. Depois de ficar a noite em vinha-d’alhos, incorpora-se o recheio de miúdos, farinha de mandioca ou pão dormido. O leitão assa no forno até a pele começar a dourar. A seguir, é untado com gordura fervente; ou borrifado com água fria. Retorna ao forno e a pele torna-se pururuca, ou seja, crocante.
Outras receitas originárias do Vale do Paraíba foram o arroz com suã, feito com um corte suíno da parte inferior do lombo (a espinha dorsal); os guisados de lebre e de outras caças, que eram feitos com pedaços graúdos e não picados; e o virado de feijão, do qual existem variações com ovo, feijão, couve, abobrinha, banana etc., todos levando farinha de mandioca.
Pela sua brasilidade e antiga importância alimentar, o virado de feijão, agora conhecido por virado à paulista, merece comentário à parte. A receita contemporânea manda refogar o feijão já cozido em cebola, alho e gordura; acrescentar sal e um pouco do próprio caldo do feijão ou de água; mexer com farinha de milho ou de mandioca; servir acompanhado de bisteca ou costeleta suína frita; linguiça frita; banana empanada e frita; ovo estrelado, de preferência com a gema mole; couve cortada em tiras e refogada na gordura; torresmo feito na hora e arroz. “Estudei esse prato”, diz o escritor gastronômico português Virgílio Nogueiro Gomes, autor do “Tratado do Petisco e das Grandes Maravilhas da Cozinha Nacional” (Marcador Editora, Lisboa, 2013). “Pode ter influência portuguesa, mas não há receita lusitana que se pareça com ele.”
Acredita-se que ninguém criou o virado à paulista. Tratando-se na prática de uma refeição completa, teria surgido espontaneamente, para alimentar os desbravadores do Brasil, que compunham as expedições denominadas entradas, bandeiras e monções. Em suas incursões pelo interior bravio, carregavam farnéis repletos de feijão cozido, habitualmente sem sal, para não endurecer; farinha de milho (a de mandioca só começou a ser produzida em escala, em São Paulo, no século XVIII); carne-seca e toucinho. Com o chacoalhar no lombo do cavalo ou da mula, os mantimentos ficavam revirados ou virados - daí o nome do prato.
As próprias entradas, bandeiras e monções encarregaram-se de introduzir o virado de feijão em Minas Gerais, onde virou o tutu à mineira. Já se questionou essa transladação, mas hoje parece haver consenso. Minas Gerais ainda era uma região a desbravar. Sua receita, porém, apresenta importante diferença da paulista. “O uso mineiro mais frequente do tutu é com feijão triturado, não em grãos, como o virado”, observou o escritor e historiador da gastronomia Ricardo Maranhão, paulista de Piracicaba, ex-professor na Universidade Anhembi Morumbi, de São Paulo. Enfim, o substancioso banquete da Fazenda Pau d’Alho foi uma comilança patriótica.
P.S. Esta crônica teve como base um texto que publicamos na revista GULA nº 116, de junho de 2002. Atualizado e enriquecido, supomos ter ficado “despiorado”, como disse recentemente o jornalista e escritor mineiro Humberto Werneck, adotando uma expressão verbal criada anos atrás por seu conterrâneo Otto Lara Resende, também jornalista e escritor.
VIRADO À PAULISTA
Rende cerca de 6 porções
INGREDIENTES
.3 colheres (sopa) de farinha de milho
.1 colher (sopa) de farinha de mandioca
.4 conchas de feijão cozido com o caldo
.50g de bacon cortado em cubinhos
.3 dentes de alho picados
.1 cebola pequena bem picada
.Pimenta-do-reino moída na hora a gosto
ACOMPANHAMENTOS
.6 bistequinhas de porco grelhadas
.3 gomos de linguiça toscana fritos
.2 maços de couve cortados finamente e passados rapidamente na frigideira
.6 ovos fritos
.100g de tiras de bacon fritas (ou torresmo)
.Arroz branco
PREPARO
1.Misture as duas farinhas e umedeça-as um pouco com as mãos molhadas. Reserve.
2.Bata, no liquidificador, metade do feijão cozido com o caldo. Reserve.
3.Em uma panela, frite o bacon até ficar dourado, adicione o alho e também deixe dourar. Em seguida, refogue a cebola.
4.Na mesma panela, agregue o feijão batido e a outra metade com os grãos inteiros.
5.Deixe ferver e adicione aos poucos as farinhas, mexendo sem parar, até dar o ponto de pasta bem mole (depois de amornar, ela engrossa muito). Salpique a pimenta-do-reino.
6.Sirva com os ingredientes do acompanhamento.
Receita de Receita preparada por Mara Salles, chef em São Paulo, SP.
IMAGENS
1.Dom Pedro I: Litografia de 1830, de autoria do francês Henri Grevedon (Wikipédia/Divulgação).
2.Virado à paulista: receita brasileira criada provavelmente no tempo das entradas, bandeiras e monções, no Brasil Colônia (Wikipédia/Divulgação)
Eiji Tomimatsu, Gilmar Costa Dos Santos e outras 280 pessoas
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