GUERRA NA MESA

 GUERRA NA MESA

Publiquei este texto na revista VEJA de 03/3/2021, sobre o tartufo bianco, o cogumelo espontâneo que é vendido a 3.500 euros o quilo (cerca de 23.400 reais). Os franceses conseguiram cultivá-lo no seu país, acabando com a exclusividade dos italianos
Se os franceses algum dia invejaram os vizinhos italianos, por colherem anualmente no seu solo o perfumado tartufo bianco (trufa branca), que esqueçam o desgosto. Aliás, teriam cobiçado uma preciosidade gastronômica tão valorizada quanto o caviar do Mar Cáspio. Agora, acabou o privilégio. Os franceses desvendaram o mistério do cultivo, ocultado pela natureza, do mais exclusivo cogumelo subterrâneo do planeta, que nasce espontaneamente nas regiões italianas do Piemonte, Toscana, Úmbria, Emília-Romagna, Lombardia e Marche.
O Institut National de la Recherche Agronomique, conhecido por INRAE, anunciou em Paris que seus pesquisadores, em conjunto com os colegas do Pépinières Robin, especializado em cogumelos comestíveis, conseguiram plantar e colher pela primeira vez no mundo um tartufo bianco igual ao nativo italiano, inclusive no aroma. O gol agronômico foi marcado no sudoeste da França, na região da Nova-Aquitânia, cuja capital é Bordeaux.
Já tinham sido realizados esforços para cultivar o tartufo bianco, inclusive na Itália, mas não se conseguia desvendar completamente seu processo de desenvolvimento. Apesar dos resultados frustrantes, os trabalhos eram reestimulados pelo preço da preciosidade. Na última colheita (prefere-se dizer caçada), ocorrida como de hábito entre o final de outubro e início de janeiro, o preço da iguaria, na Itália, era de 3.500 euros o quilo (cerca de 23.400 reais).
Também existe tartufo bianco espontâneo em outros países europeus, como nos da extinta Iugoslávia, mas de menor prestígio. Falta-lhe às vezes o perfume inebriante exalado pelo chamado “diamante da culinária italiana”, quando amadurece. Combina gás metano, alho, terra molhada, mel, especiarias, feno e por ele os gastrônomos ficam de joelhos.
Saboreia-se o tartufo bianco em lascas (ou finas fatias) cortadas na hora, sobre ovo frito, massas de fios, algum risotto e pratos de carnes tipo carpaccio e steak tartare. O preço não inibe o consumo. Em São Paulo, esgotaram-se em dias os cinquenta quilos da iguaria importados em 2020 pelo restaurante Fasano, que vendeu a 790 reais cada prato de tagliolini al burro (massa de fios finos, na manteiga), com 20 gramas de tartufo bianco (padrão internacional).
Os restaurantes de São Paulo são no Brasil São Paulo os que mais oferecem o Tuber magnatum Pico, nome científico do cogumelo subterrâneo. Encomendam da Itália de 250 a 300 quilos por temporada. Há também o tartufo nero ou trufa negra (Tuber melanosporum) e o de verão (Tuber aestivum), encontrados igualmente na Itália, França e na Espanha. Podem ser espontâneos ou cultivados. Entretanto, liberam aroma e sabor menos intensos e custam um terço do preço.
Ainda vai demorar para o Tuber magnatum Pico dos franceses concorrer com o italiano. A colheita em Nova-Aquitania se limitou a três cogumelos em 2019 e a quatro em 2020. Mas a simples descoberta da técnica de plantio constitui avanço notável. «Admitimos que o resultado anunciado pelos franceses é interessantíssimo, pois o cultivo do tartufo bianco não passava de ideia romântica”, comentou o italiano Mauro Carbone, diretor do Centro Nazionale Studi Tartufo, na cidade piemontesa de Alba, santuário do cogumelo subterrâneo.
O tartufo bianco ocorre no solo a uma profundidade de 5 a 60 centímetros, em simbiose com plantas superiores, para as quais cede água e sais minerais absorvidos do terreno. Recebe em troca carboidratos já elaborados, das raízes de árvores como carvalho, castanheira, álamo, salgueiro, tília e pinheiro mediterrâneo.
Seu tamanho vai de uma noz a uma laranja. A cor oscila do branco com veias rosadas ao cinzento- amarronzado. O peso fica entre 250 a 500 gramas, raramente um quilo. Na década de 1950, os italianos alegraram o presidente norte-americano Harry Truman com um Tuber magnatum de 2,5 quilos.
Dura pouco e deve ser consumido em até três dias depois de caçado, pois escurece e amolece rapidamente. Perde cerca de 2% do peso por dia e o perfume desaparece com a mesma velocidade. Prolonga-se sua vida útil por uma semana envolvendo-o em guardanapo de papel, colocando-o dentro de recipiente tampado e o mantendo na geladeira.
Caça-se o cogumelo subterrâneo com o auxílio de um cachorro, que acompanha o tartufaio ou trifulau, nome dado na Itália ao caçador. O animal o identifica pelo perfume e recebe um pouco de ração como prêmio. Antigamente, usava-se o porco, com um inconveniente: confundia o cheiro do tartufo bianco com o do hormônio liberado pela espécie no período do acasalamento. Tinha o ímpeto de devorá-lo.
Hoje, usa-se um cachorro de raça, o lagotto romagnolo, originário do Império Romano. Mas o tartufaio conservador prefere o bastardino (bastardinho), o vira-latas. Adestra-se o cachorro a partir dos seis meses de idade e aos dois anos já está preparado para caçar; aos 13 ou 14, passa a ser dispensado, pois o olfato diminui. Devidamente treinado, um cachorro vale 30 mil euros (200 mil e 700 reais).
O tartufaio explora um território secreto e só na hora da morte revela os pontos nos quais encontra seu tesouro. Reza a lenda que o cogumelo subterrâneo nasce sempre no mesmo local, dia e hora. Por isso, a caça acontece quase sempre de madrugada, para driblar espiões. A Itália tem 18 000 caçadores de tartufo bianco, cadastrados ou clandestinos. Um tartufaio experiente fatura nos três meses da temporada cerca de 30 000 euros (entre 133 mil e 800 reais e 200 mil e 700 reais).
É compreensível que a Itália ainda lidere por muito tempo o mercado, com a produção do seu Tuber magnatum Pico espontâneo. Mas a França e os países que a copiarem serão rivais. As mais antigas receitas da iguaria surgiram no Império Romano, cerca de dois mil anos atrás. Desde então, basta saboreá-la uma vez para jamais esquecer. Segundo apreciadores, o tartufo bianco transmite uma sensação de plenitude gastronômica só equiparada ao amor. A comparação talvez seja exagerada, mas abona uma paixão à mesa, agora transformada numa espécie de guerra.
P.S. Anos atrás, acompanhamos no interior de Alba, no Piemonte, a “caça” do tartufo bianco, em companhia do piemontês Fiorenzo Dogliani, sócio da vinícola Batasiolo, e do chef Sergio Arno, de São Paulo.
FETTUCCINE COM TARTUFO BIANCO
RENDE 4 PORÇÕES
INGREDIENTES
.500 g de fettuccine ao ovo
.3 colheres (sopa) de manteiga sem sal
.Sal e pimenta-do-reino branca moída na hora a gosto
Tartufo bianco para fatiar (na falta, use cogumelo, que jamais será a mesma coisa, mas paciência...)
PREPARO
1.Cozinhe a massa em abundante água fervente com sal e escorra-a quando estiver al dente.
2.Enquanto isso, leve a manteiga ao fogo baixo, em uma frigideira grande, cuidando para não queimar.
3.Passe a massa, já escorrida, para a frigideira, misturando-a rapidamente na manteiga derretida. Tempere com pimenta-do-reino.
4. Sirva imediatamente nos pratos, acrescentando sobre cada um 20 gramas de lascas (ou finas fatias) de tartufo bianco.
IMAGENS
1) O precioso tartufo bianco da Itália - Foto Gladstone Campos
2) Nossa expedição ao interior de Alba, em companhia do vinhateiro piemontês Fiorenzo Dogliani (o segundo da esq. para dir.), do chef Sérgio Arno (o terceiro ao centro, atrás da cabeça do cachorro) e de três moradores da região, um dos quais tartufaio (o primeiro à esq., segurando o cachorro) – Foto Gladstone Campos
Luiz Henrique Mendes, Mauro Maia e outras 72 pessoas
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