OS DOCES DO SOGRO DE LUÍS XV


Como todos os reis de antigamente, o francês Luís XV (1710-1774) casou movido por interesses políticos e diplomáticos. A escolhida foi uma aristocrata de outro país. Era filha de Estanislau I Leszczyński (1677-1766), rei que por duas vezes governou a Polônia, além de ter sido Grão-Duque da Lituânia. Os dois territórios compunham um Estado influente na política europeia. Depois que perdeu definitivamente o trono da Polônia e do Grão-Ducado da Lituânia, em consequência de uma guerra de sucessão, Estanislau I tornou-se Duque da Lorena, região independente entre 977 e 1739, hoje integrada à França.
Sogro e genro ficaram amigos pela união de interesses nacionais e relacionamento familiar. Luís XV presenteou Estanislau I com o Ducado da Lorena, para consolá-lo da perda do trono da Polônia e do Grão-Ducado da Lituânia. Também dividiam uma predileção gastronômica: ambos adoravam doces. O rei da França ia à cozinha preparar petit fours, aqueles docinhos ou biscoitos delicados para acompanhar o chá ou café. Entretanto, embora o genro não revelasse a mesma aptidão confeiteira, parecia superar o sogro na paixão gustativa. Tanto que Estanislau I é associado à criação e difusão de duas receitas antológicas da França.
A primeira é a da Madeleine (Madalena, em português). Segundo a tradição, esse bolinho delicado feito com farinha de trigo, manteiga, ovos e açúcar, aromatizado com limão, laranja e de superfície canelada, cujo formato lembra uma vieira (coquille saint-jacques, para os franceses) surgiu na Lorena, quando Estanislau I a governava. O pâtissier do Duque abandonou o posto horas antes de um banquete e sobrou para sua auxiliar a tarefa de improvisar uma sobremesa. A mulher era Madeleine Paumier. Depois de prepará-la, disse ser receita da sua avó, que vivia em Commercy, comuna do nordeste francês onde ambas nasceram. Mas há quem afirme ser originária de um antigo convento feminino da localidade.
Encantado com a novidade, Estanislau I batizou-a com o nome da ajudante e da cidade natal dela. No dia seguinte ao banquete, o Duque da Lorena despachou uma caixa de Madeleines de Commercy à sua filha Maria Leszczyńska, casada com Luis XV, moradora no Palácio de Versalhes, a 20 quilômetros de Paris. Os bolinhos chegaram e sumiram rapidamente, pois alcançaram sucesso, inclusive junto ao rei, que os considerou petit fours.
Entretanto, quem imortalizou as Madeleines foi o escritor e finíssimo gastrônomo francês Marcel Proust (1871-1922). Aos 39 anos de idade, depois de tomar um gole de chá com os bolinhos da pâtisssier de Commercy, ele foi invadido por um súbito clarão mental. Recompôs as principais lembranças da vida e começou a escrever a obra “Em Busca do Tempo Perdido”, publicada em sete partes entre 1913 e 1927. Nas suas páginas, Proust conta o prodígio auferido da Madeleine: a vitória da memória sobre a avareza do tempo; as relações e os sentimentos humanos da infância à velhice; a vida e a morte; as fases do amor e a crueldade; a ternura e a frivolidade; o jardim, o sol, o outono, o mar, a arquitetura, a música, a literatura; a mitologia grega e o judaísmo; a gastronomia, enfim.
Outro doce clássico francês relacionado a Estanislau I é o Babá ao Rum. Trata-se de um bolinho de massa fermentada, habitualmente em formato de cogumelo gigante. Servem-no com calda à base de rum, chantilly e às vezes creme inglês. Conta-se que o rei da Polônia, em uma viagem ao exterior, ganhou o bolo Gugelhupf, típico da Áustria, Alemanha, Suíça e também da Alsácia. Como demorou a saboreá-lo, o presente ressecou. Então, decidiu embebê-lo em calda de rum e o enriquecimento funcionou. Estanislau I admirava “As Mil e Uma Noites”, coleção de histórias e contos populares do Oriente Médio e do sul da Ásia, compilada em língua árabe a partir do século IX. Deliciado com o resultado gustativo, batizou a sobremesa de Ali Babá, personagem da obra. Mais tarde, o nome mudou. Passou a ser Babá ao Rum.
O pâtissier francês Gaston Lenôtre (1920-2009), figura lendária da confeitaria mundial, registrou uma versão diferente no livro “Desserts Traditionelles de France” (Flamarion, Paris, 1991). O Babá ao Rum derivaria do bolo polonês Babka (Avó), habitualmente regado com o vinho branco e licoroso Tokaji. Outra curiosidade é o fato de ser uma das sobremesas oficiais da cidade de Nápoles. Como parou no sul da Itália? Foi levada no século XIX pela brigada de cozinheiros que a aristocracia napolitana mandou adestrar em Paris, para assimilar a haute cuisine francesa.
Assim também ganhou a cidadania italiana. A receita figura em destaque nos muitos livros de pâtisserie napolitana. Eis como é referida pelo manual “L’Italia Dei Dolce”, editado por Valter Bordo e Angelo Surrusca (Slow Food Editore, Bra, Piemonte, 2003): “Variantes (no sul da Itália) do Babá Clássico são aquelas com crema (creme de leite fresco ou creme de confeiteiro), conhecidas também como parisien, e aquela típica da zona de Sorrento, banhada no limoncello (licor de limão) e vendida em embalagem de vidro onde pode conservar-se bastante”.
O Babá ao Rum desfrutou da glória de ser a sobremesa do banquete de “A Festa de Babette”, do diretor Gabriel Axel, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1988. A trama se passa em um vilarejo da costa dinamarquesa e a personagem central, vivida pela atriz francesa Stéphanie Audran, uma fugitiva da Comuna de Paris, primeira tentativa histórica de implantação de um governo socialista, ocorrida em 1871, revela-se primorosa cozinheira. A certa altura, conta ter aprendido a receita do doce quando era chef do Café Anglais, inaugurado em 1802 e frequentado pela aristocracia de Paris. O restaurante funcionou até 1913 e o Babá ao Rum foi uma das atrações do seu cardápio.
Quanto ao genro guloso de Luís XV, era uma pessoa conhecida e estimada. Inspirou o compositor italiano Giuseppe Verdi na composição de “Un Giorno di Regno” ou “Il finto Stanislas” (“Um Dia de Reinado” ou “Falso Estanislau”), de 1840, melodrama operístico, dividido em dois atos, sobre um soberano polonês que se esconde por causa de uma guerra de sucessão e era incontrolável comilão. Primeira tentativa conhecida de ópera-bufa, estreou no Teatro alla Scala, de Milão, em 1840.
Pode-se ouvir no link abaixo a abertura de “Un Giorno di Regno” ou “Il finto Stanislas”, pela Berlin Philharmonic Orchestra, sob a regência do maestro austríaco Herbert von Karajan:
A paixão pelos doces só não conseguiu fazer Estanislau I apagar uma perda que devastou seu coração. Ele teve duas filhas com a bela nobre polaca Catarina Opalińska. A mais velha, Ana Leszczyńska, morreu de pneumonia aos 18 anos. Era cogitada para casar-se com o rei sueco Carlos XII. A outra, Maria Leszczyńska, casou-se com Luís XV. Pai amoroso, Estanislau I ficou tão arrasado com a morte de Ana que solicitou encarecidamente à Maria para nunca mais pronunciar o nome da irmã. Ela o ocultou inclusive de Luís XV. Anos mais tarde, o rei da França descobriu o segredo guardado ao pé da letra pela mulher e ficou perplexo ao saber que Maria tivera uma irmã.
MADELEINES
Rendimento: aproximadamente 30 unidades
INGREDIENTES
.4 ovos
.200g de açúcar
.Suco de 1 limão
.Raspas da casca de ½ limão
.250g de farinha de trigo
.10g de fermento em pó
100ml de leite
.150g de manteiga derretida
.Manteiga para untar e farinha de trigo para polvilhar as forminhas
PREPARO
1.Misture numa tigela os ovos, o açúcar, o suco e as raspas de limão. Junte a farinha de trigo e o fermento em pó peneirados juntos.
2.Misture muito bem a massa com uma espátula, deixando-a homogênea.
3.Por último, adicione o leite e a manteiga derretida, trabalhando a massa até ficar bem lisa. Deixe descansar durante 30 minutos.
4.Coloque em forminhas próprias para Madeleines (formato de conchas caneladas), untadas e enfarinhadas, sem encher completamente. Na falta, tolera-se o uso de forminhas redondas ou ovais.
5.Asse por cerca de 10 minutos em forno preaquecido a 200ºC, diminua o fogo para 180ºC e asse por mais uns 10 minutos, aproximadamente.
6.Desenforme e deixe esfriar sobre uma grade.
Receita do pâtissier Fabrice Lenud, de São Paulo, SP.
IMAGENS
1)Madeleines: a versão mais difundida é que surgiram na Lorena, como sobremesa improvisada para um banquete (Wikipédia)
2)Retrato de Estanislau I Leszczyński, retrato de 1727, por por Jean-Baptiste van Loo (Wikipédia)

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